Matéria publicada originalmente no Brasil Post.
Acabei de finalizar um curso sobre Revolução Cognitiva com o Nepô, engajado professor carioca que vem tentando travar uma batalha pela melhor uso da tecnologia para resolver problemas enfrentados pela complexidade demográfica: em pouco mais de 100 anos, passamos de uma população de 2 para 7 bilhões de pessoas.
Toda a discussão no Clube do Nepô tem sido de grande valia, pois me faz enxergar de fora e de cima o que estamos vivendo. Ele usa uma metáfora para explicar o mundo atual: imagine duas cidades sem conexão entre si. Entre elas um vale imenso, impossível de transpor.
De repente, alguém constrói uma ponte. O que muda?
Se uma das cidades é pacata e a outra agitada, as características de cada uma delas começa a ser incorporada na outra. Produtos, serviços, empreendedores, assassinos e ladrões ganham passe livre para ir e vir. Essa é a internet na nossa vida, essas são as novas tecnologias que inventamos para conectar ideias e pessoas. Tudo está conectado e quanto mais partes tem um sistema, quanto mais ligações existem, mais a complexidade aumenta.
Saímos de um mundinho linear para um mundo extremamente complexo, com muito mais gente falando, buscando, consumindo e produzindo, tudo ao mesmo tempo. A pergunta é: como lidar com isso?
“Não há regras simples para lidar com o que é complexo.” Yaneer Bar-Yam.
Presidente fundador do Instituto de Sistemas Complexos da Nova Inglaterra, desde 1980, Bar-Yam desenvolve uma grande variedade de modelos quantitativos para comportamentos do sistema complexos, tais como a dinâmica de rede, a instabilidade do mercado e as crises globais de alimentos, entre outras. Ele diz que todo sistema complexo tem duas características: a escala e a complexidade, e para explicar, faz uma analogia com os sistemas de proteção do corpo humano.
“De um lado, temos o sistema neuromuscular que age por escala – cérebro comandando nervos que acionam músculos que movem ossos. A lógica é hierárquica, centralizada e linear – o cérebro manda, nervos e músculos obedecem, todos juntos, orquestrados, somando esforços numa mesma direção, para gerar uma ação em grande escala (defender de um soco, por exemplo).
Do outro lado, temos o sistema imunológico que lida com a complexidade – glóbulos brancos independentes agindo cada um por conta própria e em todas as direções – que serve para nos defender de inimigos minúsculos, tais como bactérias, vírus e fungos. Cada célula age com liberdade e se comunica com as outras, o que gera milhões de ações a cada segundo, uma diferente da outra, cada uma delas microscópica, em pequena escala – e o resultado final é uma imensa complexidade, com o corpo protegido de uma quantidade quase infinita de possíveis ameaças.”
Para viver saudável é preciso ter os dois sistemas: neuromuscular e imunológico. Não há nada que um bíceps forte possa fazer para matar uma bactéria, assim como glóbulos brancos sarados são inúteis numa briga.
É assim com todo sistema complexo: precisamos de algo hierárquico para lidar com a escala das coisas, e de algo conectado em rede para a complexidade.
Lidar com o sistema de escala é confortável para nós. Desde Henry Ford, já experimentamos, erramos, acertamos e por isso sabemos como agir. Mas no novo sistema complexo, ainda estamos tateando no escuro.
Na educação, o ensino padronizado já não combina com alunos desatentos e ansiosos para produzir e participar. Algumas soluções? Transformar professores em facilitadores, ouvir mais os alunos, valorizar as diferenças e usar a tecnologia em sala de aula.
No mundo corporativo, para vencer a alta rotatividade e desmotivação de funcionários, as corporações estão, pouco a pouco, levantando a bandeira do protagonismo, do senso de dono, da capacitação e da meritocracia.
Temos visto manifestações, panelaço, muita gente querendo, de forma equivocada e ainda confusa, gritar por sua participação nas decisões que afetam suas próprias vidas. Isso é o sistema complexo: cada pessoa tentando, cada um a seu jeito, vencer as ameaças que chegam por todos os lados.
Tudo o que existe hoje vai sofrer alguma mutação diante da revolução cognitiva e estamos no meio da mudança. Estamos tateando no escuro porque não temos repertório anterior. Essa mudança é dolorosa porque exige mudar a cultura, mudar a essência, acabar com a dependência e ganhar autonomia.
Mas nossa educação não cria autonomia, nosso governo não cria autonomia, nossas leis não dão autonomia, as empresas não sabem lidar com autonomia. Como indivíduos, não aprendemos a ser autônomos.
Autonomia exige pensamento estratégico, exige analisar o que deu certo, o que deu errado, ter opinião sobre as coisas, ter repertório e mais do que nunca, estar aberto a ouvir outras análises. Justamente por isso, a ferramenta mais importante para a autonomia é o diálogo.
Quais as premissas para estabelecer o diálogo? Estamos preparados para essa mudança?
Um bom diálogo deve ser útil para todos. Ou seja, deve partir de problemas e necessidades de todos. Se as pessoas não se enxergam no assunto, simplesmente perdem o interesse.
Ouvir passa a ser mais importante que falar.
Quantas vezes o outro está falando e nós, ao mesmo tempo, ficamos “matutando” qual será a resposta perfeita? No diálogo real é preciso abrir mão da individualidade e levar em consideração a experiência de todos. A riqueza está justamente na construção em conjunto.
O resultado do diálogo é um processo que ninguém consegue controlar.
Quando dois ou mais lados estão trazendo informações e você está realmente aberto à experiência de troca é impossível saber onde vai dar. A solução provavelmente não vai ser nem a que você queria, nem a que o outro queria, mas uma junção de ambas as ideias. Você fala, o outro fala e a solução vocês constroem juntos.
Justamente por isso, cada diálogo é único e nunca mais vai se repetir.
A complexidade está aí, escancarada, só não vê quem não quer. Se realmente não começarmos a ouvir e construir um diálogo real que ajude a desconstruir o modelo atual e reconstrua junto os novos caminhos da humanidade, tenho dúvidas se poderemos sobreviver ao caos.